Entrevista a David Bonneville

por Elsa Garcia

Fotografia de Cláudia Varejão

“O carro é teu mas a boleia é minha” Como surgiu a ideia para essa tagline / teaser?

A ideia surgiu no London Shorts Film Festival em 2012 que seleccionou o Cigano enquanto work-in-progress para uma “cirurgia clínica”. Recebeu comentários de três profissionais ligados ao cinema de áreas diversas – um realizador, um programador e uma produtora. No diálogo com o painel surgiu esta frase que acho que sintetiza bem uma das grandes premissas do filme.

Fala-me sobre a tua ideia para esta curta, foi com base em alguma história que leste ou ouviste?

A ideia surgiu de um conjunto de duas experiências concretas que vivi em Portugal, trazidas à memória por um encontro do acaso que tive no metro em Londres. Passo a explicar – no fim de 2008 estive fechado em casa a escrever argumentos, relatórios e projectos para o fim do mestrado (David completou o mestrado em Argumento e Produção para Cinema & TV com a bolsa de mérito académico da Universidade de Westminster em Londres). Nestes últimos dias de entregas fui a um jantar em casa de uma colega. Fui de metro, e quando entrei no vagão estavam sentados ao meu lado e à minha frente uns adolescentes que falavam num idioma que eu desconhecia. Poderia ser romani, talvez algum idioma de leste, mas a aparência dos rapazes levou-me a pensar que pudessem ser ciganos. Eles conversavam entre eles e predominavam no espaço. O olhar de um dos rapazes, embora não fosse ameaçador, despertou-me a ideia de escrever uma estória sobre um confronto. A este episódio somou-se a experiência de um roubo que tive anos antes, também no metro, em Lisboa, e ao perigo que pode coexistir num vagão entre a plenitude de pessoas desconhecidas concentradas num local fechado. Este foi o ponto de partida.

E o argumento?

Para construí-lo fui buscar outro episódio de quando tinha 16 ou 17 anos e vinha a caminhar de guarda-chuva pela Av. Marechal Gomes da Costa, no Porto. Na altura era apenas uma área residencial privilegiada com casas, mansões e com muito pouco movimento humano. Subitamente apareceu-me um rapaz desdentado e de fato de treino a pedir-me boleia debaixo do meu guarda-chuva. Sem me dar tempo a consentir lá se pôs a caminhar ao meu lado com uma conversa tranquila mas inquisitória. Como me chamava, onde estudava, onde morava… até que chegou ao cerne da questão e me informou que “era um tipo fixe” mas que teria de vir comigo para minha casa porque estava a precisar de dinheiro urgentemente. Nesse momento olhei à volta e não vi vivalma. Pensei: “mãezinha, perdoa-me, mas é desta que vamos ficar sem casa”. Eu só tentava ver alguém na rua que me pudesse servir para o afugentar. Mas não passava ninguém. Senti-me a afundar por dentro. Como é que me vou livrar deste tipo que deveria ter uma ou duas facas no bolso? Foi esta a inspiração para a curta, baseada na hipótese de “e se este caramelo tivesse entrado na minha casa?” …como pode alguém ser prisioneiro no seu próprio espaço e o que é que acontece depois?

Em que baseaste a escolha dos dois personagens?

A construção do Zé-Tó, o personagem de etnia cigana (interpretado pelo actor Tiago Aldeia), foi construído totalmente de modo intuitivo. Ajudou-me ter conhecido ciganos que moravam num bairro da minha freguesia quando era mais novo e ter uma noção emotiva de como eles se relacionam com as pessoas. No entanto não tenho episódios concretos, são experiências que ficaram apenas nos arquivos sensoriais. Na fase de re-escrita do guião li também o livro de um autor cigano (em pseudónimo) que saiu em Inglaterra e que achei muito interessante pois revelava o interior da cultura cigana sem pudor.  Não há nada do livro no filme, serviu apenas como referencia contextual. Quanto ao protagonista Sebastião (interpretado pelo actor Jaime Freitas) foi também desenvolvido intuitivamente e crescendo no papel em contraste com o Zé-Tó. O Sebastião representa o público. É com ele que nos devemos identificar. Depois quem dá o último grande toque nas personagens são os actores. Adoro trabalhar com actores e conseguir com que eles encarnem as personagens da melhor maneira possível. Não restam dúvidas de que o que eu mais gosto de fazer como realizador é dirigir actores.

Conta-me um pouco do percurso da curta desde a ideia até à execução.

A ideia, como refiro acima, é de finais de 2008. Deixei assentá-la, digeri-a bem e comecei a escrever no primeiro trimestre de 2009. A estória deu várias voltas. Inicialmente ia passar-se numa casa, mas nessa versão parecia que o Sebastião poderia facilmente escapar. Encurralei-os no vagão do metro mas entretanto vi a cena do assédio com a Juliette Binoche em Código Desconhecido e achei por bem metê-los num carro para não fazer uma referência directa a Haneke, que naturalmente muitos pudessem apontar ou comparar. Reescrevi a versão dos dois no carro com um amigo, e também
argumentista, Diego Rocha. Em 2010 ganhei o subsídio do ICA com a produtora David & Golias e a rodagem passou para o último trimestre de 2011. Filmámos tudo em apenas três dias, mais intenso do que filmar para a televisão, mas adaptei-me, claro. De qualquer forma não sou realizador de repetir muitas takes. Gosto de aproveitar a espontaneidade do momento – o meu máximo foi repetir um plano seis vezes porque não estava exatamente como eu queria. De resto, tivemos imensa sorte com o clima: três dias de sol intenso em Outubro. Foi um milagre. Tive tudo o que queria à disposição – os actores e a equipa ideais. O Vasco Viana filmou com a RED, que para mim era super importante. Adoro o cinema digital. E cada vez mais. Em finais de dezembro de 2011 tinha uma primeira montagem feita. Em 2012 ainda fiz a re-montagem final com a Mariana, a montagem de som e correção de cor em alternância, e finalmente estreou este ano. Tanto tempo e trabalho para um filme de 18 minutos!

Existem histórias curiosas que tenham acontecido nas filmagens?

Durante a rodagem não me lembro de estórias particularmente engraçadas. Mas foi muito interessante conhecer mais de perto a cultura cigana junto do grupo fabuloso de crianças que aparecem no início do filme. E mais curiosa ainda foi a viagem que eu e o actor Tiago Aldeia fizemos de Juan-les-Pins à Croisette em Cannes, na nossa primeira noite em França. Apanhámos um autocarro em frente ao hotel que transportava duas ou três famílias ciganas Romani puras, com representantes de todas as gerações – literalmente da avó ao bebé. Infelizmente não pude tirar uma fotografia do Tiago entre eles porque ele passava completamente por mais um primo direito.

Estavas à espera de tão bom reconhecimento a nível de festivais?

Este filme teve estreia nacional no Curtas Vila do Conde e estreia internacional no Festival de Locarno. Tem tido um percurso bom para os seus três meses de circulação. Espero que continue a ser visto pelo maior número de pessoas possível, nas mais diversas regiões pois fiz o filme para ter público. Espero que o Cigano inspire muita gente e se abra ao debate, opiniões e reflexões. Porém é sempre difícil saber a adesão dos festivais. É tudo muito subjectivo, depende do gosto do seleccionador e também da linha de programação do festival. Um realizador tem o dever de fazer o melhor que pode e sabe. Tentar cumprir com a melhor visão, as melhores soluções e a veracidade de cada projecto, depois o destino dirá. Obviamente que há os casos de realizadores fiéis a certos festivais e que são quase uma garantia da casa, mas isto será a excepção.

Que comentários tens recebido?

As reações têm sido bastante positivas. E eu não sou daqueles que costuma perguntar às pessoas se gostaram do filme no fim da sessão.  Deixo. Quem vier falar comigo é porque tem coisas a dizer e abre-se o diálogo. Quem cala é porque não sabe o que dizer ou geralmente não gostou. Falo de pessoas que conheço pessoalmente claro, não estou à espera de feedback da audiência em massa. Mas tenho tido o privilégio de receber muitos elogios de pessoas que vêm ter comigo depois da sessão ou nas festas.

Tens ido a alguns dos festivais. Como estão a ser as reacções ao filme?

Adorei a reação do público na estreia mundial do filme em Vila do Conde. Ouviam-se as pessoas a reagir a todos os momentos de surpresa, suspense e humor. Acho que o público português vai ter maior entendimento das subtilezas dos diálogos do que o público estrangeiro porque tem muitas “piadas privadas” nacionais – sobre futebol e outras cantilenas bem portuguesas da minha geração. Contudo, surpreendi-me muito no Hamptons Film Festival, no estado de Nova Iorque. Tive excelente reacção da sala em geral, apesar da média de idade da audiência ser mais velha comparativamente à maioria dos festivais de cinema. Pessoas muito interessadas e conhecedoras da 7ª Arte e que vinham falar comigo no fim das sessões. Várias pessoas mais novas felicitaram-me pelo filme e foi debatido nas festas nocturnas e cocktails que se seguiam às projecções. O filme teve óptimo acolhimento e elogios do júri.

Estabeleces algum paralelismo entre Cigano e as tuas outras curtas?

Não sei se estabeleço paralelismos mas encontro algumas semelhanças apesar de não serem premeditadas nem ter tido consciência disso até estarem completas. Não sei até que ponto posso ou deva levar os filmes para o divã do avô Freud para os analisar, mas assim de repente vejo que nas minhas três curtas narrativas há relações de poder entre pessoas de idades e condições sociais diferentes. A morte ou potencial de morte tendem a estar presentes também, tal como o actor Jaime Freitas.

O teu percurso tem sido pautado por curtas-metragens. Para quando uma longa? Já tens mais alguma ideia para um próximo projecto?

Faz parte do tradicional percurso de um realizador fazer algumas curtas antes de passar à longa. Neste momento estou a re-escrever uma curta para ser filmada em Inglaterra e tenho três longas-metragens em desenvolvimento. Duas de baixo orçamento e outra de ficção científica de custo mais elevado. Todos os projetos são ideias originais minhas, portanto com argumento da minha autoria. Estou também neste momento em busca de um produtor com empresa registada em Inglaterra para poder avançar com alguns projectos. Tenho andado bastante ocupado como vês, não tenho dormido muito ultimamente.