por Elsa Garcia
Como surge a ideia para o argumento de Em Segunda Mão?
Foi escrito em duas fases, a primeira ideia surgiu num sonho. Eu estava em Paris para a estreia do meu primeiro filme André Valente, a dormir num hotel e acordei a meio da noite com o que me pareceu ser o som de um tiro no quarto ao lado, e não sei se já acordada ou ainda a sonhar pareceu-me ouvir através da parede o som de uma voz saída de um gravador que dizia “Parabéns André, espero que tenhas uma boa vida”. Já não dormi, achei que era um bom início para um filme. Cheguei a Lisboa e escrevi as primeiras dez cenas do guião de uma só vez. Nunca me tinha acontecido.
Só depois do sonho é que começaste a materializar a ideia?
Sim, depois comecei a pensar já com o António Pedro Figueiredo sobre o que era esta história e quem era este homem. Quando estamos infelizes e a vida não nos corre bem olhamos para os outros e achamos que eles sim, são felizes – “São felizes porque não são eu”. A felicidade, achamos, está sempre onde não estamos.
Foi devido a isso que pensaste numa troca de identidades. O que te fascina nesta temática?
Penso que é um sentimento que quase todos nós já experimentámos: o desejo de ser outro, de trocar de vida, de partir para paraísos longínquos que imaginamos perfeitos, julgando que aí por fim vamos ser felizes. E se levássemos esse nosso desejo até ao fim? O Fernando Pessoa tem um poema em que pensei muito quando estava a escrever: “Não é com ilhas do fim do mundo, / Nem com palmares de sonho ou não, / Que cura a alma do seu mal profundo, / Que o bem nos entra no coração, é em nós que é tudo”.
Pedro Hestnes é o actor principal, e o filme surge já baseado na sua personagem?
Sim, escrevi o argumento a pensar no Pedro. Fiz o meu primeiro filme com ele na altura em que andei na escola de cinema e sempre quis voltar a filmar com ele. Ao longo dos anos vi-o mudar fisicamente, perder o cabelo, envelhecer, mas manter sempre aquele ar adolescente, de quem ainda não domina muito bem o corpo, nem está à vontade no mundo. Com outro actor, o Jorge do meu filme seria só um vencido da vida, o Pedro dá-lhe uma infantilidade e uma candura desconcertantes e transforma-o num adolescente tardio.
E a sua morte inesperada. Achas que vem de alguma forma atribuir o estatuto de ícone ao filme?
Eu gosto de pensar que o Pedro fez muitos e bons filmes e este é só mais um.
O próprio filme retrata o tema da morte, gostava que comentasses.
A morte está presente no filme porque um dos personagens quer ser outro para fugir à morte – quer ser outro para a morte o abandonar. Mas para mim este filme é sobre a nossa malfadada tendência para achar que a relva é sempre mais verde do outro lado da cerca – “Ali, ali / A vida é jovem e o amor sorri”*.
* Fernando Pessoa, Não sei se é sonho, se realidade.
O Pedro (Jorge) é um escritor de romances eróticos cor-de-rosa e as ideias aparecem enquanto dita os textos para um gravador. Como te surge esta ideia?
Lembrava-me de ver estes livros quando era pequena. Para escrever essas cenas eu e o António Pedro lemos este género de livros para percebermos o tipo de linguagem e depois escrevemos os textos misturando pequenas frases do António Botto. Digamos que os romances de Jorge nascem de uma fusão entre as Sabrinas, Biancas e o António Botto, foi um trabalho que me deu muito prazer. Pensei sempre na voz do Pedro para nos segredar aqueles textos ao ouvido, o tom baixo e grave da sua voz faz-nos sentir que ele fala só para nós.
Eu vejo um pouco de influências de alguns filmes voyeur, como o Janela Indiscreta do Hitchcock. Concordas?
Penso mais no Vertigo, porque também o Jorge se apaixona por uma mulher que não existe, uma mulher que ele inventou. Laura é o desejo, é uma projecção do que ele ambiciona. E por sua vez, Laura apaixona-se por um personagem criado por Jorge, um homem feito para ela amar. Jorge e Laura nunca se chegam a conhecer porque ambos estão presos às imagens idealizadas que criaram do outro.
Existem outros filmes nos quais te tenhas inspirado?
O filme começa como um policial e depois muda de registo transformando-se numa história de amor, mas quando já nos esquecemos do elemento policial o filme volta a ser uma história de suspense onde nada é o que parece. Pretendi que a primeira parte e o final do filme se assemelhassem aos filmes negros dos anos 40. Por isso eu e o João Ribeiro falámos sempre numa fotografia muito contrastada, cheia de sombras e onde houvesse sempre zonas na imagem onde o negro impedisse a leitura, como se a escuridão ameaçasse a qualquer momento engolir os personagens.
Porquê a utilização da película quando já ninguém o faz?
Sendo este um filme feito de ambientes e construído a partir de emoções interiores do personagem principal, precisava da fisicalidade que só a película pode dar, porque esta consegue captar as texturas, os materiais e a pele como o digital ainda não o faz.