Entrevista a João Maia

por Elsa Garcia

João Maia tinha 24 anos quando foi estudar cinema para Nova Iorque. Foi lá que esteve ligado a um grande projeto, o documentário de Bruno Almeida sobre Amália Rodrigues. Após o seu regresso realizou a curta-metragem O Prego e foi convidado para trabalhar em publicidade, tendo sido esta a sua escola. “O cinema conta histórias e na publicidade, no fundo também tens de contar uma história, embora mais curta”, diz João.

Começámos a entrevista ao som de Golden Brown dos Stranglers e numa longa conversa João foi revelando toda a história por detrás de Variações e as nuances que levaram à criação deste grande filme que estreia a 22 de agosto.

Tantos anos depois como é que te sentes ao ver o teu sonho concretizado? Foram oito anos certo?

Comecei a escrita há 15 anos e estou muito feliz com o resultado. O filme é muito credível ao nível da época, as equipas de guarda-roupa e a direção de arte fizeram um trabalho fantástico, bem como gosto imenso da fotografia. Desta equipa o André Szankowski era a pessoa que eu conhecia há mais tempo e já tínhamos falado sobre o filme há mais de 10 anos. Depois concentrei-me nas personagens e após ver o filme terminado sinto que mexe com as pessoas.

Como surgiu o teu interesse por António Variações?

Bom, eu queria fazer um filme sobre o que era o rock português nos anos 80, quando era ainda um adolescente e tinha amigos que tocavam em bandas, como por exemplo os Peste & Sida. Gostava muito de rock e interessei-me pelo Variações. Trabalhei durante muitos anos em lojas de discos, mas conhecia mal a obra dele e quando comecei a ouvir fiquei muito impressionado, até pelo facto de ele ter gravado o primeiro disco com 37 anos. E pensei: “o que é que este homem terá feito até aos 37 anos para ter gravado um disco com esta idade e ter morrido aos 39?” Ouvi tudo com atenção e comecei a minha pesquisa. Havia muito pouca informação, sabia-se que nasceu em Braga, que era barbeiro e que tinha vivido em Amesterdão. Portanto, eu andei meses e meses a pesquisar sobre ele, sem saber que história ia contar.

Como é que foi o teu processo de pesquisa?

Na altura inicial fui apoiado pelo ICA e fiz a minha pesquisa com Catarina Portas. Demorei dois anos a escrever a primeira proposta e estive a pesquisar durante cerca de um ano. Só na hemeroteca estive vários meses, todos os dias a ver jornal a jornal. Havia algumas informações que ninguém tinha encontrado. Por exemplo, dizia-se que ele tinha posto um anúncio a procurar músicos e eu encontrei esse anúncio. Essa parte foi também muito importante para me situar na época, o ano de 1977, quando ele regressa a Portugal. Fiz a minha pesquisa até 1985, tendo ele morrido em 1984, um pouco para perceber a espuma do que aconteceu após a sua morte. A Hemeroteca fez com que eu enquadrasse a época, porque em 1977 eu tinha nove anos. Depois fomos começando a entrevistar pessoas há medida que íamos construindo a sua cronologia. Quando as peças se começaram a encaixar foi quando eu comecei realmente a escrever a parte que me interessava: entre ele vir de Amesterdão e fazer o primeiro disco. No final não chegámos ao primeiro disco, foi um bocadinho antes, quando ele deu o primeiro concerto no Trumps.

Falaste com a família dele logo no início do processo?

Sim, sim.  Falei com os irmãos, a mãe tinha morrido recentemente, talvez dois meses antes. Eu lembro-me que os irmãos ainda se comoviam muito quando falavam dela. Seguidamente falei com  alguns músicos que tocaram com ele, como o Pedro Ayres Magalhães, Vítor Rua e Ricardo Camacho, que também já morreu. Depois começámos a ir mais fundo e falei com os colegas cabeleireiros para saber como foi o percurso profissional dele quando chegou a Portugal.

Até abrir o seu próprio salão. 

Sim. Ele era uma pessoa experiente mas muito desorganizada com o dinheiro. Gastava-o todo em viagens e abriu a sua própria barbearia para ter mais tempo para a música. Em determinado momento começou a investir mais na música, a comprar microfones, etc.

Mas, no entanto, ele não tinha conhecimento musical, não sabia compor e não sabia ler uma pauta, uma realidade que transmites muito bem no filme.

Sim, ele não tinha conhecimento musical a nível técnico, só tinha o intuito e aquele grande dom natural.

Foram os Heróis do Mar, GNR e Sétima Legião que o ajudaram, certo?

O single foi feito pelo Ricardo Camacho dos Sétima Legião e foi um sucesso instantâneo. Era inevitável fazer o primeiro álbum, Anjo da Guarda, em que Vítor Rua e Tóli César Machado, dos GNR estiveram envolvidos como arranjadores e produtores. Entretanto alguns desentendimentos levaram à saída de Vítor Rua dos GNR e as gravações foram retomadas mais tarde sob a supervisão de José Moz Carrapa. Já o segundo disco Dar e Receber foi feito pelos Heróis do Mar, uma banda que Variações gostava muito. Lembro-me de ele a cantar Povo que Lavas no Rio da Amália Rodrigues (a sua maior referência) e Estou Além na televisão. 

Mas antes disso ele já tinha as suas cassetes que mostrava a várias pessoas.

Sim, as cassetes no fundo tinham apenas a sua voz. Ele tocava com alguns músicos amadores, que ia descobrindo, e havia cassetes que já tinham alguns arranjos musicais. Nas cassetes já se nota que, embora ele não tivesse um conhecimento musical técnico, tinha noções de ritmo e de como gostaria que as músicas ficassem como é exemplo O Corpo é que Paga. A voz era o seu instrumento e ele colocava a melodia toda com só com a voz.

Algo também importante é o teu papel didático na formação de gerações mais novas que na verdade, não têm um grande conhecimento acerca de quem foi António Variações e sobre o que esta excêntrica personagem representou para a nossa cultura. Naquela época Variações fez a exceção. 

Sim, era uma personagem que fazia parte do mundo underground lisboeta e que só após a gravação do primeiro disco se tornou conhecida do grande público, das crianças aos idosos. Foi um sucesso, mas no entanto eu não estava à espera que tanta gente soubesse quem foi António Variações. Em algumas das zonas onde filmámos vários miúdos vinham ao nosso encontro dizendo que os avós eram fãs.

E, como é que surge o ator Sérgio Praia?

Este filme esteve em pré-produção há dez anos atrás e o Sérgio foi o primeiro ator do primeiro dia de casting, o que deixou um bocadinho em “maus lençóis” todos os outros que se seguiram. (risos).

O Sérgio tem uma enorme semelhança com António.

Sim, tem uma parecença muito grande e algo que prezei desde logo foi o timbre de voz. Desde o início que achei que ele podia cantar, embora o Sérgio não acreditasse, uma vez que nunca cantou na vida.

Mas cantou no filme.

Sim, e depois gostei muito da sua linguagem corporal, do dançar. Bom ele reunia uma série de caraterísticas que o tornaram imbatível desde a primeira hora. Na altura era um ator ainda recente e só tinha feito teatro.

Como é que pensaste o filme formalmente?

Uma das coisas que pensei desde logo foi na questão do ator principal cantar. Sempre achei que ia compor o filme e que teria peso. A ideia de alguém que passa o dia cantarolar, com uma música na cabeça, e que à noite chega a casa e não bebe, não fuma, não se droga. Esta era a base e eu nunca me quis afastar muito desta ideia. Sempre quis que fosse um filme muito simples e que desde muito cedo me perguntassem o que era o filme: “um barbeiro que queria ser cantor”.

Falemos agora da cena do Trumps, uma cena particularmente impressionante não só ao nível estético, mas também ao nível de carga emocional pois afinal foi o seu primeiro concerto.

Eu tive acesso a uma cassete com o concerto e pesquisei as descrições do que as pessoas disseram do concerto. Disseram que ele nunca teve verdadeiramente uma banda e que fez alguns concertos.

Relacionado ainda com o Trumps, como descobriste a relação de António com Fernando Ataíde?

Foi uma relação muito forte. Aliás até tenho uma pergunta sobre isso: o António que mente, foge e desaparece, mas que pede desculpa em simultâneo. Ele era muito solitário e tinha alguma dificuldade em ter relacionamentos. As duas únicas pessoas com que ele teve relacionamentos foram Jelle, o namorado holandês e Fernando. Quando iniciei a minha pesquisa a falar com pessoas que ele conhecia mais intimamente, todos me falavam de Jelle, Fernando Ataíde e Rosa Maria, a mulher do Ataíde depois de ele e António se terem separado.

No filme apercebemo-nos de um certo trio entre António, Fernando e Rosa Maria. A Rosa fechava os olhos à relação deles, embora se apercebesse do que se passava?

Mais ou menos. Ela era mais nova do que eles e apaixonou-se pelo Fernando. Os três faziam vida como se fossem familiares, iam à praia e faziam imensos programas. O António e o Fernando tinham vivido juntos uma série de anos e todos diziam que eles eram o amor da vida um do outro.

No filme a história entre António e Fernando é muito forte. Como é que achas que a comunidade LGBT vai reagir ao filme?

Acho que vai reagir muito bem. É uma história de amor muito bonita e sinto que o filme é muito comovente quando chega à parte final. Eu escrevi e reescrevi o guião várias vezes, mas há duas cenas que sempre mantive, a inicial quando ele corta a mão para sair da aldeia e as duas cenas finais.

O início do filme começa com uma deslocação temporal do passado para o presente (uma analepse). Qual foi o teu objetivo?

Achei que era importante logo no início do filme sabermos de onde é que ele vem. Importante também a forma como acaba com a digressão em que ele vai para a aldeia, onde nasceu, com o Fernando. Achei que seria muito forte filmá-lo novamente em Fiscal e desta vez a mostrá-la ao amor da sua vida.

Achas que ele era inseguro?

Sim, sim. Era seguro em algumas coisas, mas artisticamente tinha muitas inseguranças que se veem exatamente no reportório que é muito honesto. A canção até podia correr mal, mas ele não estava a enganar ninguém.

Em que cassete ou canção vês mais o António?

No Visões Ficções.

Vai agora sair um disco resultante do filme. Fala-me sobre Isso?

Desde que percebi que havia a possibilidade de ser o ator a cantar os novos arranjos (executados por Armando Teixeira/Balla), achei que havia uma possibilidade de reinventar. O público está interessado nestes novos arranjos que Variações tinha na cabeça antes de começar a gravar, antes de ser famoso. São basicamente os arranjos do filme, mas com uma maior densidade de estúdio em músicas cantadas pelo Sérgio Praia. Vai ser editado pela Sony Music Portugal.

Achas possível o ressurgimento de uma figura como António Variações? 

Possível é sempre possível. Nós fazemos o nosso destino. Portanto, alguém que ache que tem o sonho de fazer algo diferente, tem sempre essa possibilidade.

Que ambições tens para o filme?

Gostava que o filme tivesse muitos espetadores, para que as pessoas se apercebam da força de António. Ele foi muito forte, viajou imenso, tinha imenso jeito para a música. Não acho que fosse um génio, acho que era um tipo que sabia o que queria. Tinha jeito para trabalhar a melodia, as palavras, os refrões. Era uma pessoa comum, com uma sensibilidade muito grande e com um sonho para realizar. Quero muito que o filme lhe preste uma homenagem. O António foi um artista muito popular na época, e gostava que o filme fosse visto tanto pelos seus fãs como pelos mais novos. Portanto queria que a reação do público fosse transversal e gostava que tivesse alguma repercussão lá fora.