por Elsa Garcia
Qual foi a tua inspiração inicial para o filme, o que te levou a fazê-lo?
Tudo partiu da minha experiência com a maternidade, que por sua vez me levou a recorrer a uma rede de mulheres da minha família e a conhecer uma pessoa que contratei para fazer limpeza em minha casa, e que era guineense.
Foi esse factor que te levou a explorar a cultura guineense no filme?
Sim, foi o facto de ter conhecido esta mulher que me despertou para a Guiné e cheguei à conclusão que havia um grande desconhecimento do povo guineense por parte do povo português… Depois percebi que ela não só era guineense como também era muçulmana. Certos dias ela aparecia com menos roupa e havia dias em que aparecia vestida da cabeça aos pés. O estudo de uma socióloga, a Maria Abranches, fez-me perceber que se tratava de uma negociação entre os valores tradicionais e a nova identidade emigrante. Havia uma vontade de um estilo de vida ocidental (o consumismo, a mundanidade, a emancipação derivada à independência económica conquistada) e as tradições (Ramadão, horas das rezas, etc).
Inicialmente tiveste algumas reservas com ela?
Não, acabei por sentir um pouco aquilo que se chama de efeito espelho. Ela também era mãe, tinha mais filhos do que eu, que tenha apenas uma filha, e acabei por nutrir uma grande admiração por ela. Trabalhava bastante, pois tinha vários empregos, saía de casa às 05h da manhã e voltava às 21h. E dei por mim a pensar em como é que ela conseguia conjugar todos estes trabalhos com quarto filhos. Foi assim que me apercebi que havia uma rede de apoio muito grande, que existe em todas as comunidades de emigrantes, mas na guineense é especialmente forte. Quando comecei a ter mais curiosidade, a querer conhecer e a criar uma relação de confiança com ela, aos poucos, comecei a aceder a essa comunidade extremamente fechada ao exterior. Entre eles não são nada fechados, pelo contrário, são muito efusivos e celebrativos. A vida social é cheia de festas e das mais diversas cerimónias. Essas festas são levadas muito à séria, por vezes começam à sexta e acabam ao Domingo… aí são umas rainhas e reis, vê-se o lado da África dos Impérios… não é apenas a realidade dos olhos na esfregona.
Denoto que tens um grande fascínio pela Guiné.
Tendo em conta que a Guiné é composta por apenas um milhão de pessoas, existe uma diversidade gigantesca entre as pessoas devido à existência de muitas etnias, sendo que a maior condensação encontra-se em Bissau. As pessoas coabitam com as suas diferenças culturais, que são muitas vezes radicais, mas acaba por haver uma convivência fantástica. É admirável a forma como conseguem respeitar-se, vivendo situações que poderiam transformar-se facilmente em guerras. A Guiné é um fenómeno sociológico.
A Sofia é uma pessoa que vive fechada e angustiada com os seus medos. Sofre em silêncio a morte do irmão e a forma do espectador se aperceber desse facto é através de uma porta que se mantém fechada na sua casa. Como surge a ideia de mostrar esse lado a partir de uma porta fechada?
De certa forma eu acho que a nossa primeira família, a célula, desaparece da forma como nós a conhecíamos e ficam só espectros. Eu acho que, se como a Sofia, ficarmos a viver na mesma casa e permanecer intacta, os fantasmas aparecem. Há um luto da primeira família, e eu própria quis pensar a minha primeira família pelo facto de estar a criar uma nova. No entanto o meu irmão não morreu, o filho (que tem uma existência duvidosa no filme) no meu caso a minha filha é bem concreta! O que acontece é que eu separei-me do pai a minha filha muito cedo e ficava sem ela aos fins de semana, o que me criava uma sensação de estranheza, uma sensação de irrealidade enquanto mãe… Os dias em que eu ficava sem ela punha em causa a minha nova identidade e começava a sentir-me a Inês que eu era antes de ser mãe. Ao invés de me afligir, esta situação, estimulou-me e resolvi explorá-la.
Conta-me sobre a forma como concebeste o filme, o casting, a escolha das personagens, a forma como trabalhaste com os actores…
As minhas escolhas foram muito intuitivas mas precisei de as confirmar. A Aissato foi a primeira jovem guineense que eu conheci. Estava na rua a vender produtos num pequeno mercado na Damaia, onde se podem comprar coisas que chegam semanalmente da Guiné. Ela estava a vender farinhas, pimentos, óleos, e pouco falava português. Gostei muito dela e achei que tinha uma carácter fortíssimo embora nos tivéssemos expressado meio em português, meio em francês. Achei-a muito à vontade, acessível, deu-me logo o nº telefone. Só um ano depois é que voltei a falar com ela. Fiz casting e convidei-a logo para fazer o filme. A Paula também foi o primeiro casting que fiz, depois fiz vários e voltei à Paula que me pareceu ideal para o filme.
Como trabalhaste com elas?
De formas diferentes, pois são pessoas com diferentes experiências. Tivemos um período muito importante de leitura do guião, como se fosse uma peça de teatro, lemo-lo em voz alta e depois começámos a conversar sobre ele, a analisá-lo e a construir as personagens. Elas contavam a história da sua vida, enquanto personagens. Depois começámos a fazer improvisações à volta de cenas que surgiam. Depois ensaiámos na casa onde filmámos e aí fiz a planificação. Depois foi deixar que a vida entrasse no próprio filme. Ambas tinham uma excelente dinâmica entre elas e puxaram uma pela outra. Quando comecei a trabalhar com a Aissato fui um bocado ingénua porque achei que, como ela nunca tinha trabalhado como actriz, não tinha estratégias de representação, o que foi um erro. Ela via imensas telenovelas que eram uma referência para ela! Foi preciso ajustar e criar um estilo. A Aissato “nivelou-se” com a Paula e vice-versa.
No filme a chegada de Mariama muda a vida da Sofia, levando-a a conhecer uma nova realidade que acaba por ser crucial até no seu poder para lidar com os fantasmas. Ajuda Sofia a libertar-se…
Ela anuncia-se como alguém que supostamente Sofia está à espera, mas esta não sabe, ou não se lembra. É a estrangeira, a mensageirta. Ela quase que se impõe. Sofia não quer a sua presença, mas no fundo quer e de certa forma é por isso que a deixa ficar e claramente dá-lhe essa oportunidade.
A mãe de Sofia é uma personagem forte. Vive fora e Sofia demonstra sentir uma espécie de incapacidade perante a sua ausência…
A mãe é uma sobrevivente e fez o que a Sofia queria ter feito e não conseguiu: seguir em frente. A Sofia assumiu uma posição de maternidade em relação ao fantasma do irmão, enquanto a mãe aceitou, fez o luto e partiu. De certa forma salvou-se. Eu gosto muito da personagem da mãe e ter a Maria João Luís a fazê-la foi um privilégio.
A Bobô é uma personagem secundária, mas acaba por ser uma personagem central na história, pois é a partir do seu aparecimento que Sofia recupera o seu sorriso e muda a forma como encara os fantasmas.
A personagem central é Sofia e todas as outras personagens para mim têm uma importância mais ou menos equivalente, à excepção de Mariama que é uma antagonista. É alguém que tem um peso mais ou menos semelhante ao da Sofia e um efeito espelho. Elas acabam por ser o alter-ego uma da outra.
Gostava que me falasses um pouco sobre o dia-a-dia nas filmagens.
Correu muito bem, a equipa era fantástica. Eu e os chefes de sector tínhamos conversado bastante sobre o filme e sobre o que íamos fazer. Não quis fazer ensaios, uma vez que já os tinha feito várias vezes com elas. Filmávamos até conseguir “a take”. Foi a primeira vez que filmei em HD.
Houve sempre espaço para improvisação?
Sim, mas quanto mais as coisas estão preparadas mais improvisação pode haver.
No filme abordas a mutilação genital feminina. Um tema que surge quando a avó de Mariama chega preparada para praticar a excisão em Bobô. Fizeste uma investigação sobre este tema?
Pouco tempo depois de conhecer a senhora guineense que trabalhou comigo, percebi que essa era uma questão que fazia parte da vida dela. Eu não tinha essa consciência, achava que era algo que só acontecia numa África profunda e de repente apercebi-me que ela podia ter vivido este drama, bem como as suas filhas, o que me inquietou. Não quis fazer um filme de propaganda contra a MGF mas achei que devia haver um confronto e aqui estou eu com este filme.
Mas apercebeste-te que em Portugal existe essa prática?
Sim, penso que se pratica em Portugal embora não existam provas concretas. E o que acontece também é que muitas crianças vão à Guiné nas férias de Verão, são submetidas à excisão e voltam para Portugal, traumatizadas e com lesões irreversíveis. Se é feito dentro do território nacional ou não, não é importante para mim. A grande questão é que continua a ser feito num mundo que é o de todos nós.
É um filme que fala sobre a ausência e da falta de sentido na vida com que muitas pessoas se debatem.
Mas é também um filme sobre o corpo, sobre a mulher, sobre o estatuto da mulher europeia e africana.
Desafio-te a falar sobre a forma como exploras o corpo no filme, quase a nível coreográfico.
Eu acho que sim, o corpo é muito importante no filme. O corpo da Bobô, o corpo ausente, o corpo presente. Acho que dei muita importância ao corpo e à composição no espaço.